Indignação eleitoral
Ai, ai! Isto foi um suspiro. A indignação vem a seguir: Então, pá?!! Bom, queria dizer que isto das eleições é uma parvoíce. Primeiro, não gosto de ir votar quando está a chover. E dizem-me vocês: “Mas ó palerma, hoje não choveu!” E digo eu: “Mas, quando está a chover, eu não gosto.” Adiante. Estava na fila para votar e eis que chega o senhor Derrotado e passa à frente de toda a gente. Ainda perguntei se a primeira pessoa da fila lhe cedera generosamente o lugar em troca de um beijinho, mas não mo confirmaram. Aparentemente, o tal senhor passou à frente de todos não porque era candidato, ou porque estava com pressa para ir à casa de banho, mas porque, na mesa de voto, já teriam um boletim preparado especialmente para ele, já com a cruz no devido lugar, não fosse ele esquecer-se do que estava ali a fazer na hora de votar. Depois foi embora e, ouvi dizer, não falou aos jornalistas. Parece-me óbvio que, por esta altura, estava a perguntar a si mesmo o que estava ali a fazer, por isso o melhor seria não dizer nada, como o fez. De seguida, alguém perguntou se o senhor que acabara de sair não era o senhor Derrotado. Creio que o senhor Derrotado perguntou o mesmo a quem o acompanhava. Estava já nos dez primeiros da fila quando alguém, muito indignado, se insurgiu contra a mesa. Pelo que percebi, queixava-se que não havia espaço no seu boletim para escrever uma receita de bacalhau à lagareiro que a sua avó costumava fazer e que, segundo ele, era “daqui”, isto é, da zona da orelha que segurava com orgulho. Nisto, a pessoa que se encontrava à minha frente, perguntou-me se, para derrotar a direita, permitiriam que votasse, ao mesmo tempo, em todos os candidatos de esquerda. Disse que sim, não porque acreditasse nisso, mas porque me pareceu que não era boa ideia contrariá-lo, até porque lhe reconheci algumas parecenças com o candidato Louçã. Ao mesmo tempo, já no conforto de sua casa, o senhor Derrotado dava pancadinhas na cabeça, tentando lembrar-se do que fizera nos últimos dez minutos. Já desidratado, cheguei ao primeiro lugar da fila. Em simultâneo, alguém depositava na urna um boletim completamente pintado. Mais tarde, explicar-me-iam que se tratava de um homem das redondezas que julgava ser a reencarnação de Salvador Dali. Chegou a minha vez e cumprimentei, com um sorriso, a senhora que estava na mesa. Depois das burocracias do costume, deu-me o boletim e pediu-me a gentileza de informar a mesa caso encontrasse o senhor Derrotado, uma vez que se esquecera do cartão de eleitor. Fui para trás de um biombo, onde supostamente estaria uma caneta à minha espera, e um indivíduo, provavelmente marroquino, perguntou-me se queria produto. Disse que não e peguei na caneta. Ao meu lado, estavam outros votantes, entre eles um que batia com força em si mesmo, visivelmente irritado com algo. Perguntei-lhe se estava tudo bem e ele explicou-me que era analfabeto. Pensei para mim se não deveriam existir boletins especiais para quem não sabe ler, mas depois achei melhor ajudá-lo. Paciente como sou, pedi-lhe então para me dizer qual o candidato em que queria votar, que eu próprio faria a cruz no local correcto. Disse-me que estava indeciso entre o senhor Derrotado e um dos sete anões. Quando me desembaracei dele e consegui, finalmente, votar, disse a mim mesmo que jamais voltaria a votar ao mesmo tempo que tanta gente estúpida. É impressionante como tão pouca gente faz ideia daquilo que é votar! Dizem-lhes que é um dever cívico e pensam que é como dar sangue, mas sem doer. Antes de dobrar o meu boletim, lembrei-me do senhor Derrotado e imaginei-o, naquela altura, sentado diante da televisão, dizendo à mulher-a-dias para lhe trazer o Cerelac e para mudar de canal, pois queria ver a final do Euro 96. Dirigi-me à mesa para entregar o meu boletim e pensei, uma vez mais, na estupidez que é o acto de votar, considerando-me superior por saber, ao contrário do resto das pessoas, o que tinha ido ali fazer. Quando pus o boletim na urna, perguntei para o senhor que me devolveu o cartão de eleitor: “Quando é que anda à roda?”
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