segunda-feira, agosto 14, 2006

Salve, Zidane!

Esteve Kafka em Santo Tirso? Tudo indica que não. Mas pareceu-me uma forma suficientemente absurda de começar um texto sobre Deus. Quer dizer, não é sobre Deus, é sobre Zidane, mas vai dar ao mesmo. Aproveitando que falei em Kafka, depois de se ler o autor checo, fica-se certamente com a ideia: “Vou-me entregar à arte!” Ou à arte ou à droga. Se bem que a droga não faz tanto mal. Em Kafka, o mundo que rodeia a personagem central é profundamente absurdo. Tudo o que envolve o protagonista é incompreensivelmente antagónico àquilo que ele é e nada do que faça ou pense será entendido. Esse homem, o artista por excelência, para quem todos os outros são absurdos, está acima dos outros: é o único ser verdadeiramente livre, ainda que nada lhe seja consentido. Contudo, de outro ponto de vista, para o mundo é o protagonista que é absurdo, pois é ele quem está em desequilíbrio com o que o rodeia, é ele quem não se adequa à norma, é ele quem é o louco. Para o leitor, absurdo é eu estar a escrever sobre o absurdo. Talvez seja. Ainda assim, parece-me que absurdo é tanto o que é absurdo como o que não é absurdo, dependendo da perspectiva. E, perante isto, pergunta o leitor: Andas nos copos? Nem por isso. A verdade é que tudo isto tem algum sentido. Isto é, há uns minutos, tinha algum sentido. Querem que conte uma história? Tudo bem, não conto. Pego então na já mítica cabeçada de Zidane ao italiano Materazzi, durante o prolongamento da final do campeonato do mundo de futebol, gesto com que o francês terminou a sua áurea carreira de jogador profissional. À excepção de um ou outro pateta, o público foi de opinião que o gesto violento de Zidane envergonhou o desporto e manchou a sua despedida enquanto futebolista. Dizem esses iluminados que Zidane, cuja despedida do futebol poderia coincidir com a gloriosa conquista de mais um campeonato mundial, conquista essa, que, a realizar-se, se deveria quase exclusivamente à genialidade de que era possuidor, traiu-se a si próprio e aos que o idolatravam, ao perder a cabeça. Para esses mesmos seres inteligentíssimos, nada de mais glorioso haveria que terminar a carreira erguendo a taça, de sorriso no rosto. Para essa gente de inomináveis qualidades, glória é apenas nome de mulher. Para esses doutos senhores, a vida é um prazer tão grande como um rebuçado de mentol. Talvez o mundo se vergasse momentaneamente aos pés de Zidane, se tal acontecesse, e talvez, mesmo, ninguém lhe roubasse a conquista da imortalidade, se conduzisse a França ao segundo título mundial. Talvez… Mas basta ao génio a colheita de todos os triunfos? Ou será a glória mais que carimbar o nome entre os ilustres triunfadores? Para aqueles que repetem, de peito feito, que o acto de Zidane lhe subtrai valor, as minhas sinceras saudações pela lucidez de espírito… Não há nada como ignorar a arte, basear-se em ideais pré-definidos ou ajuizar acções pelo grau de catolicismo que transportam para se poder viver em paz… A todos os outros que, estupidamente, se curvam ainda ante o génio do francês: “Tenham vergonha, pá!” Então o homem dá uma cabeçada num companheiro de profissão, deixa os seus ao abandono, passando ingloriamente ao lado da taça que deveria levantar, desencadeia a derrota da sua selecção e a decepção de uma nação, e ainda assim veneram-no?

Fechemos agora os olhos às aparências e finjamos que somos dotados, afinal, de alguma inteligência. O verdadeiro génio não tem que prestar satisfações. Ao cabecear o adversário, violentando todas as regras de conduta da sociedade e ignorando o prejuízo que tal irreflexão acarretaria, Zidane completou-se. Foi como que afirmar: “Se eu quiser, sou campeão do mundo, se não quiser, não sou.” E todos aqueles que depositavam esperanças nele, bem como os que torciam para que ele falhasse, ficaram de repente à mercê da sua vontade. Com um simples gesto, Zidane abraçou o céu. Quem recorda, hoje, os italianos a festejarem o título, ou os gauleses cabisbaixos ante a final perdida? A única coisa que perdurará na memória das pessoas, bem como nos anais da História que contarão às gerações que virão depois de nós, são os segundos dramáticos que acompanharam a saída de Zidane do relvado, caminhando decidido para o balneário enquanto passava ao lado do troféu mais importante do mundo sem lhe lançar o olhar. Só isso restará. Por que nos compraz a figura de Hamlet, se matou a família toda antes de se suicidar? Se Napoleão, enquanto líder de um exército, pode ser responsabilizado pela morte de tantos soldados inimigos e civis inocentes, por que razão é lembrado como um génio militar? Estará o génio acima dos outros homens, acima da moral, da lei?… Para certos loucos, a resposta não é difícil. A única coisa que prende o génio à terra é a expressão corpórea da sua alma. Ignorar o mundo – eis a expressão máxima do talento do homem. Zidane não se envileceu; perfez-se! Ignorar o troféu e a glória humana, a fé com que alimentava os que acreditavam nele e o desafecto dos que eram contra ele, abandonar tudo o que era humano em si, escapando à modorra do mundo e libertando-se totalmente – eis o que o lhe perpetuará a fama… Porém, é inútil pedir que o vulgo compreenda o génio. Tornar-se absurdo, à vista dos outros, é o preço a pagar por se ser diferente… E como os protagonistas de Kafka, Zidane será eternamente vaiado pelos néscios. Como Gregor Samsa, será visto como um insecto frágil, que os homens medíocres não são capazes de compreender, mas que podem aniquilar se lhe ignorarem a existência. Ao mundo é sempre mais fácil ignorar o que não percebe. Portanto, aos olhos do mundo, como Joseph K, Zidane morreu “como um cão”. Mas, tal como o protagonista kafkiano, perdurará, por essa mesma razão, na eternidade… Salve, Zidane!