Chamamos ou não chamamos?
Há coisas que nem eu, que sou quase Deus, percebo. Devido ao avolumar da área ardida e ao incessante avanço das chamas, a Oposição tem, nos últimos tempos, reforçado a ideia de que deveria ser declarado o estado de Calamidade Pública. O Governo retalia, dizendo que não é motivo para tal. Ora, essa tal Calamidade Pública até tem um nome porreiro, que impõe respeito e tal, mas, tirando isso, em que é que ajuda? Será que, quando uma povoação estiver cercada pelas chamas, o comandante dos bombeiros, vendo que não tem mais nenhuma solução, assobia e a Calamidade Pública aparece e salva toda a gente? E como? Será que é com o sopro gelado que aprendeu a fazer com o Super-Homem? E sendo assim tão eficaz, não deveria ter sido chamada já há muito tempo? Ou será que também habita em Kripton e, no estado em que andam os transportes públicos, isso é coisa para demorar uns mesitos a chegar? A verdade é que não se fala noutra coisa. Uns dizem para se declarar o tal estado, outros dizem que não é necessário. E isto deve dar azo a conversas do género: “ Meu Comandante, hoje temos duas frentes a oeste, um reacendimento naquela colina acolá e o vento parece que se está a levantar. Será melhor chamarmos a Calamidade Pública ou basta que nos emprestem o tal Canadair que nos andam a prometer, que a gente, com a nossa perícia, faz o resto?” Quer-me parecer até que, a confirmar-se a reputação dessa misteriosa entidade, os próprios incêndios serão os primeiros a cair em si e a desacelerarem a sua marcha floresta adentro. Entre os próprios incêndios, surgiriam certamente conversas como esta: “Xiii! Ó Joca, parece que este Verão não temos mais trabalho. Declararam o estado de Calamidade Pública!” Ao que o outro dirá: “Xiii! Então é melhor que nos extingamos a nós próprios antes que ela chegue. Se há coisa que não gosto é de ser sovado pela Calamidade Pública. Ainda bem é que ela demora sempre algum tempo a vir; sempre dá para consumir uns bons hectares de mato antes de nos fazermos à estrada e irmos consumir armazéns de material pirotécnico para Trás-os-Montes.” E acredito, além disto, que caso se decidam mesmo a declarar esse tal estado, será o próprio Homem quem se comportará devidamente. Acho que existem estudos, inclusive, que provam que, declarando-se o estado de Calamidade Pública, ninguém faz queimadas, ninguém fuma perto de locais arborizados e todos aqueles que antes tinham ideias incendiárias passam a brincar com Pini-Pons e a ouvir Celine Dion. Aliás, parece que declarar o estado de Calamidade Pública é o mesmo que lançar na atmosfera um gás qualquer que consciencializa as pessoas e que as torna dóceis e afáveis. Não sei é como é que ainda não se lembraram de levar esta ideia para o Médio Oriente! Tenho quase a certeza que a Calamidade Pública resolvia todos os problemas entre palestinianos e israelitas e ainda lhe sobrava tempo para ir até ao Iraque ajudar as tropas norte-americanas a domesticar um povo inteiro.
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