Então e agora?
Epah, a malta mais velha diz que o pessoal que anda a estudar é tudo uma cambada de irresponsáveis, que não levam nada a sério, que andam a brincar com o dinheiro dos pais, que escolhem os cursos sem saberem porquê e que, quando os acabam, não sabem o que fazer. Para demonstrar que isso não é bem assim e que isto até é rapaziada bastante séria, queria então dizer umas quantas coisas. Um gajo acaba a licenciatura e depois? O que fazer agora? Bom, agora, agora, vou acabar de mastigar que não gosto de falar com a boca cheia... Pronto, já está! Só falta passar o guardanapo. Pronto. Palitar os dentes também dava jeito, mas é melhor não, que se faz tarde... Esperem, falta o arroto a assinalar a satisfação. Pronto, cá está!...
Bom, o que eu queria mesmo era um emprego que me desse prazer, respeito e que fosse uma coisa minha, para não ter que aturar patrões chatos. Por isso, decidi ser violador. Tenho é que optar por uma carreira mais específica. É que, apesar de ser uma área em franca expansão no mercado, hoje em dia já ninguém é apenas violador. O que está a dar agora é ser violador de alguma coisa, como por exemplo, violador de pinguins coxos, ou violador de carros furtados com matrículas a começar por A. Uma coisa que andou aí na berra foi a violação de menores, mas agora já está muito batido e a polícia (para os amigos, os chuis) anda à coca. Por acaso, violação de menores nunca foi uma área que me atraísse em especial, até porque sempre teve grandes nomes a explorá-la e uma pessoa que queira entrar no ramo é sempre colocada atrás de uma secretária ou assim. E isso a mim não me interessa. Não! O que eu vou é tentar explorar outras áreas. Tinha pensado na violação de calafetagens em portas de correr, mas – não sei porquê – tenho uma ligeira impressão que essa será a próxima área a crescer. Violar rolhas de cortiça que estupidamente se partem e têm que ser empurradas para dentro da garrafa também não porque dá ideia que um gajo anda metido na vinhaça e tudo o que um gajo não quer é passar má impressão de si mesmo. Outro dia disseram-me que, nos Estados Unidos, o que estava a surgir era a violação de gente que fala muito mas não diz nada de jeito, mas desconfio que isso cá tinha pouca saída, até porque haveria de certeza poucos alvos. Uma boa ideia era andar por aí à maluca a violar atendedores de chamadas, embora seja um bocado cansativo. Há também agora uma nova moda que é a violação de tendas de campismo com capacidade para 4 pessoas, ou então a violação de bocas-de-incêndio em bairros degradados. Mas o que eu quero é apostar numa área menos badalada. Há tempos, num certo dia em que acordei de repente, quando estava – e isto aposto que ninguém esperaria – sossegadinho a dormir, lembrei-me de uma coisa que era capaz de render que era violação de palavras cruzadas. O que é que acham? A mim parece-me uma ideia ganhadora. Se bem que anda para aí muito boa gente com receio dos violadores de recintos para não fumadores. Na minha opinião, o que continua a fazer furor é a violação de assentos parlamentares. Ou então, violação de regras de três simples, embora isso seja mais para gente com algum dinheiro. Uma vez que estamos a falar de um tema pouco pensado, vou dar a minha opinião. Para mim, o importante era mostrar às grandes empresas que o pequeno violador ainda tem uma palavra a dizer no mercado da violação. E, para isso, nada melhor que a criação de um sindicato dos violadores. Por exemplo, seria bom defender os direitos do violador de lâmpadas de 60 watts, ou evitar a extinção dos violadores de pacotes de leite achocolatado da Malcata. Isto porque toda a espécie de violadores deve ser preservada. Outra coisa importante seria respeitar o habitat natural do violador de estâncias de esqui. Não interferir na cadeia alimentar dos violadores de couve de Bruxelas importada – quem diria – da Bélgica era outra das preocupações que se deveriam ter, assim como a reintegração na sociedade do violador de electrocardiogramas e do violador de tomilho e hortelã. Por outro lado, era importante também, para uma melhor gestão da classe laboral, reduzir os impostos aos violadores de ecopontos, aumentando-os, por exemplo, nos violadores de capas de telemóveis foleiras; melhorar as condições salariais do violador de correntes oceânicas frias; evitar uma redução de pessoal nos quadros dos violadores de açúcar refinado; negociar aumentos anuais com o violador de bicos de fogão, com o violador de ventríloquos, com o violador de pensamentos filosóficos, com o violador de bofetadas de mão aberta, com o violador de pauzinhos de gelado, com o violador de rebuçados para a tosse, com o violador de gaitas de beiços fabricadas em Hong-Kong e com o violador de paragens cardio-respiratórias; e, por último, não desprestigiar os violadores da função pública, que aquilo é gente que merece respeito. E digo ainda mais. Do meu ponto de vista, a melhoria das condições na área da violação passa muito pela colaboração com os violadores de acácias plantadas ao lado de tulipas, com os violadores de rescisões contratuais e com os violadores de parapeitos, que são, afinal, os três grupos que dominam o sector. No fundo, o que acontece é que a crise toca a todos e o violador não é excepção. Tal como em todas as outras actividades, aqueles que exercem a violação sentem neste momento o peso da falência económica do Estado. Por isso, nesta área específica, bem como nas outras, é necessário renovar. E isso é o que pretendo fazer, ao iniciar-me na arte da violação de descontos em lojas de desporto que não vendem nem rolos de papel de cozinha nem rissóis de camarão. E aposto o que quiserem que isto é coisa para dar lucro e mais lucro. Há também a hipótese de dar uma sopinha de espinafres bem saborosa, mas quanto a isso ainda não há certezas. Enfim, concluindo. Para a malta mais idosa, que afirma que a malta das gerações que lhes seguiram não levam isto da vida a sério, só tenho uma palavra: ponham os olhos no texto acima e atrevam-se a dizer que eu não ando a pensar no meu futuro. E tenho ainda uma segunda palavra para essa malta: o lugar dos fósseis é nos museus. (Para aqueles que não me estão a ver enquanto escrevo este texto e também para aqueles que me estão a ver, mas que não perceberam o porquê do meu esgar, estou neste momento a forçar um risada de orelha a orelha, acompanhada de uma gargalhada parva e sem sentido, com a intenção de frisar que nem eu achei piada à piada anterior, mas que ainda assim decidi fazê-la por me parecer importante referir a minha antipatia para com esse tipo de indivíduos que continuam a apelidar de irresponsáveis aqueles que planeiam o seu futuro com a meticulosidade e com a seriedade com que eu, como menciono no texto acima, planeei o meu.)
Para acabar, gostaria de dizer que isto tudo, apesar de, à primeira vista, parecer um bocado ridículo, é do mais sério que há. Mais até do que sério, é algo que eu diria ser sério. Seria fácil dizer com clareza e objectividade o pretendido, mas pela facilidade com que isso seria assimilado, depressa se tornaria vão, se não mesmo pouco crível. Isto porque, da mesma maneira que a intolerância se combate só com a intolerância, a incompreensão combate-se apenas com a incompreensão e o absurdo apenas com o absurdo. Aos olhos do psiquiatra telhudo, um louco só pode convencê-lo de que já não é louco se passar a ser demasiado louco. Nesse caso extremo e só aí, o psiquiatra é obrigado a desconfiar que tamanha loucura só pode ser uma espécie de lucidez que não está ao alcance de todos. Talvez, por isso, o absurdo, por ser naturalmente incompreensível, seja pois a mais correcta forma de compreensão. E como é óbvio, não decidi coisíssima nenhuma ser violador. Mas o que julgam que sou? Parvo? Decidi antes exercer o sacerdócio, que nada há de mais prestigiante que servir Deus e orientar o seu rebanho, e que é quase o mesmo que ter o pé suspenso sobre um formigueiro com a possibilidade de esmagá-lo e destruí-lo, caso nos apeteça.
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